A morte de 236 pessoas na boate Kiss, de Santa Maria, no Rio Grande do
Sul, é resultado de uma sucessão de erros, omissões e irresponsabilidades dos
proprietários da casa noturna, da banda, que acendeu um sinalizador e provocou
o incêndio, e da fiscalização do poder público, especificamente o Corpo de
Bombeiros e a prefeitura da cidade gaúcha. Infelizmente, porém, a Kiss não é o
único exemplo de espaço em que o entretenimento se torna arma letal.
Por todo o País, diversos proprietários
negligenciam o capítulo segurança em suas casas noturnas, tratando-o como um
custo para o empreendimento, e não como um investimento na vida de seus
clientes.
Até a sexta-feira 10, centenas de bares
e boates foram interditados pelas prefeituras das capitais e de cidades de médio
porte dos Estados da Bahia, Amazonas, Ceará, Alagoas, Pernambuco, Santa
Catarina, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Esses espaços de reunião –
fiscalizados após a tragédia de Santa Maria – apresentavam falhas de segurança
semelhantes às da Kiss. Somente em Manaus, 66 boates e bares foram
interditados, inclusive a Tropical Club, uma das mais frequentadas da cidade,
que leva o nome do luxuoso hotel que a abriga. Nela, as saídas de emergência
estavam fechadas e os extintores de incêndio não tinham sinalização. Em
Salvador, várias boates funcionavam sem alvará, uma delas – localizada no
bairro boêmio do Rio Vermelho – era uma borracharia pela manhã e uma danceteria
à noite.
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Fiscalização dos bombeiros na quarta-feira 30 lacra boate 021, na Barra da Tijuca, no Rio |
Em Florianópolis, 31 das 47 boates irregulares não possuem planos de
prevenção contra incêndio. O Corpo de Bombeiros do Ceará fechou as casas de
show Kukukaya e Terraço e as boates L4 Up Club e Meet Music & Lounge, todas
de Fortaleza. Lá, 70% das boates apresentam problemas. No Estado do Rio de
Janeiro, a fiscalização constatou que apenas 5% dos estabelecimentos estão
regulares. A casa The Best Etílico, em Cabo Frio, foi a primeira a ser fechada.
O local terá que passar por reforma para que sejam incluídas saídas de
emergência. Na Kiss, de Santa Maria, havia apenas uma porta, sem opções
alternativas de fuga. Pior: esse acesso, por alguns minutos, foi fechado por
seguranças que, sem saber do incêndio, exigiram a apresentação da comanda das
pessoas que queriam deixar o local. Naquela fatídica noite, a Kiss, com
capacidade máxima para 631 frequentadores, distribuiu 830 comandas. A polícia
já constatou que mais de mil pessoas estavam na casa. Imagens do sistema
interno de segurança poderiam provar definitivamente a superlotação. Mas os
aparelhos foram retirados do local. Uma série de outras irregularidades, como
uso de espuma de fácil combustão e extintores que não funcionavam, contribuiu
para ampliar o acidente. Por isso, dois sócios, Elissandro Calegaro Spohr e
Mauro Hoffmann, estão presos. Dois integrantes da banda, Marcelo dos Santos e
Luciano Leão, também foram detidos em função do uso do sinalizador. A prisão é
por 30 dias.
Para conhecer as condições de segurança de outras casas noturnas do
País, ISTOÉ percorreu as principais boates de São Paulo e do Rio de Janeiro no
início da semana passada. Na capital fluminense, a danceteria Melt, por
exemplo, tem capacidade para 650 pessoas. A casa informava ter mais do que o
dobro do número de extintores exigidos pela legislação, mas nenhum estava
visível. No Estado do Rio, 200 estabelecimentos foram visitados e 127 sofreram
interdição. As autoridades decidiram fechar inclusive 13 teatros da capital e
Niterói em situação irregular.
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Após a tragédia, a OutLaws, do músico Luan Santana, resolveu cumprir a lei e proibiu os fogos acoplados às garrafas de champanhe, o que não acontecia antes |

Na capital paulista, de acordo com a prefeitura, 600 boates estão sem
alvará de funcionamento, número três vezes maior do que as que funcionam
legalmente. A culpa, admite o próprio poder público, nem sempre é do
proprietário, mas sim de burocracias internas do órgão municipal. Para agravar
a situação, em uma blitz do Corpo de Bombeiros realizada na semana passada em
todo o Estado, de 303 casas fiscalizadas, 177 apresentaram problemas
relacionados à segurança. Dessas, 66 têm o Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros
(AVCB), mas possuem falhas, como luz de emergência apagada ou extintor de
incêndio vencido, e 111 nem sequer dispõem do documento. A Kiss, de Santa
Maria, funcionava sem alvará desde agosto de 2012. Tanto a prefeitura quanto os
bombeiros sabiam disso e fizeram vistas grossas. Agora, o prefeito e o
comandante da corporação podem ser corresponsabilizados pelas mais de 200
mortes.
No centro de São Paulo, encontra-se na mesma situação a badalada casa
noturna Alberta. Já vão três anos que o estabelecimento abre as portas sem a
autorização da prefeitura. Empresários do setor se reuniram com o prefeito
Fernando Had- dad, na quarta-feira 30, para se queixar da morosidade da
liberação do alvará por parte do poder público e melhorar os procedimentos de
segurança. “Mas é uma falsa ilusão achar que um alvará indique que o
lugar está seguro. Pode não estar”, afirma o arquiteto e urbanista Ives
de Freitas, ex-diretor do Departamento de Controle do Uso de Imóveis (Contru).
Segundo Freitas, as adaptações feitas no interior dos estabelecimentos
muitas vezes não são informadas ao poder público, que, por seu turno, não
fiscaliza como deveria por falta de pessoal para visitar os estabelecimentos
após a liberação do alvará. “Nossas normas são de Primeiro Mundo.
Elas não são o problema. O problema é o que se instala nas casas noturnas
depois da aprovação da licença”, reforça Paulo Giaquinto, professor de
urbanismo da Faculdade de Arquitetura Mackenzie. Assim foi feito pelos
proprietários da Kiss, que colaram no teto uma espuma de isolamento acústico
altamente combustível, proibido por lei. “A espuma foi colocada por
um funcionário da boate em julho. Não poderiam tê-la usado de forma alguma”,
afirmou o delegado Marcelo Arigony, responsável pela investigação do caso. Esse
material pegou fogo logo que um integrante da banda Gurizada Fandangueira
acendeu um sinalizador no palco na madrugada do domingo 27.
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Após donos negarem o uso de fogos no interior da boate, o delegado responsável pelo caso postou no Facebook, na quinta-feira 31, suposta foto de show pirotécnico na Kiss |
Em São Paulo, a Outlaws, casa de música sertaneja do músico Luan
Santana, exibia até a semana passada em sua página no Facebook fotos de grupos
de frequentadores – a casa comporta 800 pessoas – segurando garrafas de
champanhe acopladas a artefatos pirotécnicos em ambiente fechado. De acordo com
a assessoria de imprensa do local, a cena não vai mais se repetir. Outra prova
de que durante muito tempo convivemos sem saber com a insegurança nos espaços
de diversão é uma pesquisa divulgada pela Proteste Associação de Consumidores
em 2011. O resultado do estudo, que avaliou quesitos básicos de segurança em 17
casas de São Paulo e Rio de Janeiro, já mostrava a fragilidade do cumprimento
de normas de segurança à época: nenhum dos estabelecimentos cumpria todos os
critérios necessários. “Vimos várias situações de risco. Nenhuma casa
possuía a lotação máxima afixada na porta, algumas tinham as saídas de
emergência obstruídas e outras nem sequer possuíam extintor de incêndio em
lugar visível”, comenta Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da
Proteste. Uma das visitadas foi a The History, que fica na Vila Olímpia, em São
Paulo. “A The History apresentava muitos obstáculos próximos à saída, o que
pode dificultar a fuga em caso de incêndio.”

O medo, tanto dos frequentadores quanto dos proprietários, tem se
refletido no movimento das noites em todo o País. Na terça-feira 29, um dos
mais famosos locais de diversão do Brasil, a rua Augusta, em São Paulo, estava
vazia. Dois dias após a tragédia de Santa Maria, poucas foram as casas noturnas
paulistanas que se arriscaram a abrir as portas. Mesmo após a reunião com o
prefeito Fernando Haddad, vários donos de boates optaram por não retomar a
programação. O grupo justifica que é um modo de expressar solidariedade e, ao
mesmo tempo, checar a própria segurança. Também correm para corrigir falhas que
seriam flagrantes. A profusão de portas fechadas é um indício claro de que
muita coisa permanece obscura quando o assunto é a segurança de espaços onde
multidões se concentram. “É fundamental que se estabeleça uma
legislação federal que unifique as normas para estabelecimentos”,
afirma o especialista em análise e gestão de risco Ricardo Chilelli,
diretor-presidente da RCI First. A expectativa é de que esses sinais se
transformem em medidas objetivas para garantir que tragédias como a de Santa
Maria não se repitam.

Foto: JEFFERSON BERNARDES/AFP, Gustavo
Stephan/Ag. Globo; NEY MENDES/ACRITICA/PAGOS; Rafaella Arcuschin/Folhapress;
Jean Schwarz/Ag. RBS/Folhapress
FONTE: Flávio Costa, Rachel Costa, Tamara Menezes e Rodrigo Cardoso - Isto É