Nos arredores do maior açude do Ceará, moradores de assentamentos, cidadezinhas e vilas sofrem com a seca enquanto a água passa diante dos seus olhos para abastecer o agronegócio, a indústria, e a capital, Fortaleza.
(Foto: Coletivo Nigéria) |
A reaparição da antiga Jaguaribara, que jazia sob a obra de engenharia hidráulica que prometia reduzir drasticamente os efeitos da seca no Vale do Jaguaribe, tem um quê de fantasmagórica no período mais árido que o Ceará enfrenta nos últimos 50 anos. Dos 184 municípios cearenses, 175 estão em situação de emergência. A nova Jaguaribara, a cidade planejada que substituiu a que foi submersa pelo açude, está sendo abastecida por carros-pipa e seus moradores chegam a pagar R$ 8 o quilo do feijão, enquanto os pequenos agricultores às margens do Eixão, o canal que abastece Fortaleza, precisam repartir a água com os animais e veem suas lavouras perdidas.
A mais de 200 quilômetros dali, porém, o Castanhão, via Eixão das Águas, garante a água na capital cearense e, em breve, vai suprir também a demanda hídrica do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o maior projeto de infraestrutura para o desenvolvimento econômico do Ceará, localizado na região metropolitana da capital. Resta apenas concluir o quinto trecho do Eixão das Águas – que então terá 255 km de extensão – o que está previsto para setembro.
Confira a matéria do coletivo Nigéria:
A água do Castanhão vai completar seu trajeto do sudeste do Estado, onde está o açude, ao litoral cearense. O objetivo é final é o complexo industrial conjugado ao porto, que vem registrando crescimentos anuais entre 20% e 30%, composto por uma siderúrgica da Vale, uma refinaria da Petrobrás e duas usinas termelétricas da empresa MPX, do grupo de Eike Batista – que já opera com uma das usinas e vai colocar a outra em funcionamento nos próximos meses. As duas usinas térmicas, planejadas para gerar 1.085 MW, vão consumir até 800 litros de água por segundo. A demanda total de água prevista para o complexo é de 5 mil l/s de “água bruta” – o termo técnico para a água doce não tratada.
Dez anos de promessas não cumpridas
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Dos 22 mil litros por segundo de vazão do Castanhão, 10 mil seguem pelo Eixão das Águas e 12 mil são despejados no leito do Rio Jaguaribe – o maior rio cearense, com cerca de 600 km de extensão, margeado por empreendimentos do agronegócio. Esse volume de água explica por que, ao contrário de Recife, por exemplo, nem a seca prolongada trouxe ameaça de racionamento à capital cearense, destaca o coordenador geral do Complexo do Castanhão, José Ulisses de Sousa, engenheiro do Departamento de Obras Contra as Secas (Dnocs).
Por outro lado, nem todos os 18 assentamentos planejados para receber as famílias desalojadas pela barragem foram concluídos. A maior parte dessas famílias era arrendatária de terras alheias e não recebeu indenização pelas casas perdidas. Na ponta final do Eixão das Águas, a obra atingiu os índios Anacé, que tiveram uma lagoa aterrada, riachos represados e perderam suas terras para grandes indústrias e para a infraestrutura do governo.
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“Concordo que é um pouco tarde”, concede Ulisses. “É a questão da burocracia do sistema do governo brasileiro. Nós temos vários órgãos fiscalizadores, temos uma Lei de Licitações engessada, que proíbe a gente de correr. Não tem como. A gente fica engessado. Tem que esperar licitação, Procuradoria dar parecer, ai demora mesmo. Agora que é tarde, é”, reconhece o engenheiro. “Existe um débito do governo com essas comunidades, mas em nenhum momento parou-se de trabalhar em cima de alcançar o objetivo do projeto inicial do Castanhão”, afirma.
Ulisses também reconhece que é um “absurdo” que as comunidades às margens do Castanhão tenham que ser abastecidas através de carros-pipa. Dos 820 caminhões da Operação Carro-pipa no Ceará – coordenada pelo Exército e pela Defesa Civil e responsável por atender a 134 municípios do estado –, dois deles abastecem exclusivamente Jaguaribara, incluindo casas da sede do município.
“Essas coisas pretas são do pipa mesmo”
O dono e motorista de um destes caminhões é Fabiano Souza, de 33 anos, que encontramos despejando 8 mil litros de água na cisterna do agricultor Francisco Ferreira Sobrinho, o seu Zé Vital, a cerca de 300 metros de uma das margens do açude. A água é captada a alguns quilômetros dali, na estação de tratamento da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), e não tem muito boa cara dentro da cisterna de seu Zé Vital.
“Essas coisas pretas assim são do pipa mesmo, ferrugem talvez. Não tem problema não porque a gente bota no filtro e bota na geladeira. A gente bebe dela aqui e nunca ninguém adoeceu, não”, confia seu Zé Vital.
No centro comercial de Jaguaribara a revolta com a falta d’água na vizinhança do açude transborda na fala de Dona Jacinta Sousa, 48 anos. Para reforçar a dificuldade por que passa o município ela pega uma maletinha de ferramentas repleta de pequenos blocos de anotações, que registram os muitos débitos não saldados em seu comércio. “Eu tenho raiva quando pego nela!”, diz, fechando a valise e jogando-a mais uma vez para debaixo de seu birô.
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As chuvas de abril, maio e junho, que amenizaram os impactos da estiagem, não significaram o fim da seca – especialmente porque o segundo semestre é naturalmente o período de estio no semiárido brasileiro. Também não alteraram consideravelmente os níveis dos açudes, apenas dois deles estão com mais de 90% de seus níveis máximos: Curral Velho e Gavião, ambos alimentados pelo Castanhão. O primeiro, localizado no município de Morada Nova, é o marco entre os trechos I e II do Eixão das Águas; o segundo, na região metropolitana de Fortaleza, fica na intersecção entre os trechos IV e V, de onde parte tanto a água da capital quanto a tubulação de 55 km que leva ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).
No percurso entre um e outro reservatório, porém, populações das margens do canal sofrem com a escassez de água – como os moradores do Assentamento Amazonas e da comunidade Piauí de Dentro, localizados na fronteira entre os municípios de Morada Nova e Russas.
No Assentamento Amazonas, que cobre uma faixa de terra de 3.700 hectares, cortada pelo Eixão, o ano passado e os primeiros três meses deste foram improdutivos, com água suficiente apenas para a sobrevivência. Além do abastecimento do carro-pipa, que enche as cisternas de uma a duas vezes por semana, uma outorga da Cogerh autorizou retirar 15 mil litros de água por dia do canal. Mas, embora o assentamento exista há 15 anos, não há adutora instalada para abastecer as mais de 50 famílias. Eles têm que pagar um trator para transportar a água, por 25 a 30 reais a carrada (mil litros. Conforme o tamanho do rebanho e da família, isso significa desembolsar até R$ 150 por semana, retirados das bolsas governamentais e aposentadorias.
Os assentados Irmão Nem, presidente da associação dos assentados, e Antônio Porfírio, o Tonhão, que ocupava esse cargo quando foram feitas as negociações para que o canal cortasse a terra do assentamento, afirmam que até hoje as promessas da época da construção do Eixão das Águas não foram cumpridas.
“Na época, eles indenizaram essa parte aqui [a faixa de terra por onde hoje passa o canal]. Mas quando foi pra passar o pique, veio uma equipe do governo e prometeu que deixava áreas irrigadas aqui pra nós. No caso, ele prometeu 50 hectares, pelo menos meio hectare de irrigação pra cada um. Sendo 46 de irrigação e 4 hectares de tanque de peixe. Mas infelizmente já se passou o tempo e até hoje ninguém encontrou isso aí”, conta Irmão Nem.
Na fazenda do Grupo Edson Queiroz tem água
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Na lista de outorgas para o Eixão, sete estão em nome da Agropecuária Esperança, totalizando uma vazão de 2.318 litros por segundo. Questionado sobre o assunto, o diretor de Planejamento da Cogerh, João Lúcio, afirmou que a vazão para a fazenda foi reduzida para priorizar o abastecimento da grande Fortaleza na estiagem, e negou a existência de privilégios no acesso à água.
“Se houver disponibilidade, essa água vai atender o pequeno e vai atender o grande. Não desconhecemos a questão política, porque a gente sabe que a sociedade tem suas correlações de forças, mas nós temos nossa visão aqui na Cogerh. Se tiver água, nós vamos atender os pequenos e vamos atender o grande”, insistiu.
De fato, a lista com 240 outorgas ao longo do canal é formada principalmente por pequenos usuários, que consomem volumes entre 0,4 e 10 l/s. Contudo, não é possível precisar quantos destes estão na mesma situação do Assentamento Amazonas, que possui a outorga, mas não a adutora. A instalação da adutora é de responsabilidade de quem solicita a outorga e os trabalhadores rurais não tem como bancar esse custo, o que prejudica toda a atividade econômica nas pequenas propriedades.
Mesmo quando já investimento do Estado para as adutoras, outros problemas podem inviabilizar o abastecimento das comunidades. A Secretária de Recursos Hídricos – órgão ao qual está subordinada a Cogerh – investiu R$ 6,5 milhões em 23 sistemas de abastecimento que atendem a 32 comunidades localizadas a uma distância de até 2 km das margens dos trechos I, II e III do Eixão. Segundo a secretaria, foram construídas infraestrutura de captação, adução, reservação e chafariz para estas comunidades e outros 12 sistemas estão em fase de licitação. No entanto, ressalva feita pela própria assessoria do órgão, seis dos sistemas já instalados estão parados por falta de infraestrutura suficiente de energia elétrica, de responsabilidade da Companhia Energética do Ceará.
Da varanda se vê, mas não chega na casa
Apesar de não ter sido citada pela secretaria, este parece ser o caso da comunidade de Piauí de Dentro – vizinhas ao Assentamento Amazonas –, em que as 60 famílias continuam sem acesso à água do Eixão. A agricultora Maria Glécia, de 31 anos, conta que a adutora instalada pelo programa da SRH com recursos do Fundo de Combate à Pobreza funcionou durante uma hora e meia. Há mais de um ano está parada, assim como estão sem uso a caixa d’água e o chafariz construídos para distribuir a água.
“Agora tá até bom, tá chovendo um pouquinho… Mas foi ruim, viu? 2012 a gente vendo os bichos morrer… E a gente também. Tinha dia que não tinha água. A gente sabia que tinha aqui, mas como tirar?”, pergunta.
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Glécia, o marido Josemberg, o irmão Wagner e o cunhado Gertúlio não sabem dizer quantas cabeças de gado perderam pela falta de água ou mesmo por caírem dentro do canal ao escorregarem no desfiladeiro, que não possui qualquer proteção. Outras tantas foram furtadas depois que o trânsito de pessoas aumentou na área com a abertura da estrada que margeia o canal. Por isso, ninguém cria mais gado solto ali.
As obras do Eixão trouxeram outros impactos graves à comunidade. As pedras e sedimentos gerados pela obra, assim como a engenharia utilizada para o desvio do curso da água, acabaram por aterrar parte de uma lagoa e de um açude da comunidade, hoje água salobra. O cânion separou de um lado a vila de casas e do outro os lotes de terras dos moradores, o que transformaria um percurso original de poucos metros num jornada de 3 km cada trecho, não fosse a resistência. Foi preciso a comunidade se mobilizar e passar três dias inteiros deitada sobre dinamites até conseguir a garantia do governo de que seria construída uma ponte no local.
Para a indústria, água subsidiada
A lista de outorgas de uso de água para o CIPP já soma uma demanda de 3.860 l/s, incluindo empreendimentos que ainda serão instalados, como a Companhia Siderúrgica do Ceará. A CSP, um investimento da Vale em parceria com as multinacionais sul-coreanas Dongkuk e Posco, lidera a lista com uma demanda de 1,5 mil l/s, quando entrar em operação em 2017. Mas, no momento, a Cogerh já fornece uma vazão de 55 l/s para a fase de terraplanagem. A demanda da CSP inclui o consumo de água a termelétrica que será construída para fornecer energia à siderúrgica.
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No vídeo institucional das térmicas do Pecém, a empresa chega a se gabar da “abundância” de água: “Além do carvão mineral, outra matéria é necessária para a geração de energia: a água. Nessa região, ela é encontrada em abundância devido à proximidade com o reservatório da Cogerh.”
O reservatório ao qual o vídeo se refere é o Açude Sítio Novos, com capacidade para 50 mil m³, ou seja, um açude de pequeno porte. Não por acaso, afora o Eixão das Águas, cinco outras cinco barragens de mesmo tamanho serão construídas para abastecer o pólo industrial – como mostra o documento “Cenário Atual do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (versão preliminar)”, produzido pelo Pacto pelo Pecém, uma articulação de várias instituições em torno do projeto do CIPP, capitaneada pelo Conselho de Altos Estudos da Assembleia Legislativa do Ceará, fortemente engajada na concretização do CIPP.
Alguns deputados estaduais chegaram a formar uma caravana para percorrer o Estado com o objetivo de pressionar a Petrobrás para iniciar a construção da Refinaria Premium II – que compõe com a siderúrgica da Vale os empreendimentos-âncora do complexo –, e as matérias de interesse do CIPP são tratadas com deferência na assembléia. Em junho de 2011, por exemplo, os deputados estaduais aprovaram um desconto de 50% no preço da água consumida pelas térmicas da MPX, o que foi contestado por parte da opinião pública cearense.
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A lei que instituiu o desconto estabelece que a empresa deve consumir no mínimo 7.200.000 m³ por ano, o que representa aproximadamente 228 l/s. Se o número for confrontado com os 800 l/s previstos na outorga, portanto, em três meses e meio as térmicas atingem a cota mínima determinada. A reportagem da Pública entrou em contato com a assessoria da MPX para uma entrevista sobre as tecnologias de reuso de água e redução da emissão de gases poluentes das duas térmicas do Pecém. Mas foi informada de que a empresa não poderia se pronunciar por estar no “período de silêncio”, uma determinação da Comissão de Valores Mobiliários que tenta impedir que empresas envolvidas no momento em transações influencie o mercado.
FONTE: Coletivo Nigéria/Agência Pública