Um prejuízo social
MARCIA CRISTINA KREMPEL, 57, enfermeira, presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen)
Responder corretamente a essa questão exige reflexão por parte dos parlamentares, dos profissionais da área da saúde e também da população, que será diretamente afetada pela decisão a ser, em breve, tomada no Senado Federal.
Quando falamos em "Ato Médico", referimo-nos a um projeto de lei que procura regulamentar a profissão dos médicos. A princípio, parece uma questão simples, pois há centenas de anos sabemos o que os médicos fazem. Mas, por algum motivo, isso nunca esteve, em nosso país, regulamentado em lei.
Observando assim, é saudável e necessário que os limites da atuação profissional do médico sejam conhecidos. Mas, por que outros profissionais da saúde têm feito manifestos contrários ao projeto?
A questão é que, com a concretização do Sistema Único de Saúde (SUS), toda a população teve acesso a uma enorme gama de serviços desenvolvida de forma multiprofissional e especializada. Essa especialização é concretizada na figura de médicos, psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros e outros profissionais, o que tornou o acesso à saúde possível e eficiente, tanto nas grandes cidades quanto em aldeias indígenas no interior da Amazônia.
As causas das doenças, em sua maioria, são multifatoriais, cabendo a cada profissional, dentro de sua formação técnica, identificar um conjunto de sinais e sintomas (diagnóstico nosológico) para a minimização da patologia do paciente.
Aqui, começa a primeira discussão: então, a partir da aprovação do projeto, apenas os médicos poderão diagnosticar sinais e sintomas? Se os parlamentares entenderem que sim, então chegamos ao primeiro e mais polêmico retrocesso.
Ao dizer o que é ou não atividade privativa do médico, o projeto acabou, nas entrelinhas, dizendo o que é ou não atividade de outras profissões que já possuem o seu exercício profissional regulamentado. Essa é uma questão fundamental, pois restringe o acesso da população aos serviços de saúde.
A enfermagem corresponde a 1,5 milhão de profissionais no país. A sua atuação é realizada de acordo com a técnica e a ciência consolidados em seu saber prático e teórico. Com o "Ato Médico", como ficaria o tratamento de feridas? Como ficaria o controle das doenças sexualmente transmissíveis, das parasitoses intestinais, da tuberculose?
Graças à legislação e aos protocolos do Ministério da Saúde, esse contingente de profissionais especializados pôde atuar na promoção da atenção básica de saúde.
No Estado de São Paulo, existem cerca de 110 mil médicos ativos, enquanto temos quase 500 mil profissionais de enfermagem, que também são responsáveis por melhorar a atenção básica no âmbito do SUS baseados nesses protocolos.
Por isso dizemos que a aprovação do "Ato Médico" é um prejuízo social, por restringir, além de tudo, a atuação multiprofissional já consolidada e que trouxe inúmeros benefícios a milhões de brasileiros.
Tanta articulação e pressão pela aprovação da proposta, em moldes não consensuais, obrigam-nos a entender que há, definitivamente, uma tentativa de criar reserva de mercado. Fato que comprova isso foi a tentativa de tornar a acupuntura atividade privativa do médico, enquanto diversas associações ligadas à Organização Mundial da Saúde, em seus manifestos, repudiaram tal restrição.
Hoje, 3.000 mil profissionais de enfermagem praticam acupuntura no Brasil. Com sua saída do mercado, o valor dos procedimentos irá aumentar e quem será prejudicado é a população. Por isso, o Conselho Federal de Enfermagem será contra a aprovação do "Ato Médico" enquanto o texto da matéria continuar afastando ainda mais a população de uma assistência de saúde universal e igualitária e enquanto atentar contra o conhecimento científico adquirido por outras profissões, que se especializaram em seus estudos para oferecer à população a saúde digna que todos merecemos.
Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo neste sábado (5)