Gallery

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Os anos sombrios da era Carlos Felipe

Após cinco anos de mandato, gestor sai de cena sem grandes realizações ou inovações, mas deixa rastro de intolerância a opositores, desmandos administrativos, empreguismo político e  truculência contra servidores.

Na tarde da última sexta-feira (4), o médico Carlos Felipe Saraiva Beserra renunciou ao mandato de prefeito de Crateús. Eleito pela primeira vez em 2008 e reeleito em 2012, o médico foi considerado uma esperança de renovação e moralização da classe política no município, mas não demorou muito para que o povo crateuense percebesse que o novo gestor municipal não traria qualquer inovação e seria apenas mais um instrumento nas mãos de figuras conhecidas da velha política, aliando-se a chefetes politiqueiros que representam o que há de mais reacionário e retrógrado na política crateuense.

A despeito das diversas hipóteses levantadas para a renúncia de Felipe, a versão oficial é a de que ele deixa a cadeira de prefeito para disputar uma vaga na Assembleia Legislativa do Estado nas próximas eleições. Os adeptos das teorias conspiratórias, contudo, acreditam piamente que a desistência do mandatário deve-se a interesses escusos e teria ocorrido forçosamente, abrindo caminho para a gestão de Mauro Soares.

Sob a liderança de Carlos Felipe, estabeleceu-se, no município de Crateús, um governo com viés autoritário, marcado, principalmente, pela politização das ações e a relação verticalizada com os movimentos sociais.

2009: a máscara cai

2009. Paralisação dos professores de Crateús.
FOTO: Adriana Calaça
Na campanha de 2008, o candidato Felipe prometeu valorização do funcionalismo público municipal. Em evento promovido pelo Sindicato dos Professores para discutir as propostas de campanha dos candidatos a prefeito para a categoria, seu vice na chapa, Mauro Soares, que o representou na ocasião, foi aclamado pelos docentes. Em nome de Felipe, Mauro afirmou que tudo o que estava no papel seria cumprido. 

Em 2009, contudo, logo após tomar posse, Carlos Felipe entrou em rota de colisão com o Sindicato dos Professores, cujo fechamento tornou-se para ele uma questão de honra. Durante os mais de cinco anos em que foi prefeito, nunca reconheceu a legitimidade da entidade, a qual se referia sempre como "associação", por não possuir registro sindical, conquista alcançada somente em 2013.

Comércio de Crateús baixa as portas em protesto contra
corte de salário de professores
O resultado do embate foi a maior greve da história de Crateús. Ao todo, foram 85 dias de paralisação, deflagrada em virtude do descumprimento da Lei do Piso do Magistério no município e do Plano de Cargos, Carreiras e Salários (PCCS) da categoria, além da intenção manifesta do gestor em reduzir a diferença salarial entre professores graduados e de nível médio, de 45% para apenas 5%. Os professores municipais crateuenses puderam sentir na pele toda a fúria de Carlos Felipe, que determinou o corte salarial de todos os grevistas. Mesmo após o retorno ao trabalho, o corte persistiu. Os docentes só voltaram a receber seus pagamentos após Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT).

Sem salário, muitos docentes não puderam honrar seus compromissos financeiros, o que afetou seriamente o comércio local. Em solidariedade aos professores, dezenas  de comerciantes crateuenses baixaram as portas de seus estabelecimentos, em ato de protesto contra a truculência da gestão municipal.

2009. Professores de Crateús fazem greve em defesa da Lei do Piso:

2010: o movimento 'fora Aurineide' e a criminalização da luta

2011. Professores protestam no Fórum da Comarca de
Crateús em audiência do processo movido por
Aurineide Aguiar contra Edilson Martins
2010 foi marcado pelo movimento 'Fora Aurineide'. Organizado pelo Sindicato dos Professores, a mobilização pedia a exoneração de Aurineide Aguiar do cargo de secretária de Educação. Inconformados com a forma verticalizada como a secretária, que também é professora, se relacionava com a categoria, os docentes foram às ruas para pedir a saída da gestora. Aurineide sentiu-se pessoalmente ofendida com declarações do professor Edilson Martins, então presidente do Sindicato. A secretária denunciou o dirigente sindical à polícia e ajuizou ação contra ele. 

A judicialização tornou-se a via eleita pela gestão municipal para tentar silenciar os opositores. Notórios críticos da gestão municipal tornaram-se alvo de processos. Além do professor Edilson, Aurineide também processou o vereador Arnaldo Minelvino e a professora Elizabet Gonçalves. De todos, Aurineide cobrava R$ 40 mil em indenizações por danos morais. Arnaldo e professor Edilson já obtiveram vitória em primeira instância. O processo da professora Elizabet ainda aguarda julgamento. 

Inconformado com as críticas frequentes do professor Arquimedes Melo Marques, Carlos Felipe também resolveu processá-lo. Na justiça, o prefeito requeria nada menos que R$ 100 mil em indenizações por danos morais, mas foi derrotado em primeira instância.

2011: a truculência avança. Saúde entra em greve


20/09/2011. Profissionais de saúde de Crateús paralisam 
atividades e fazem caminhada em defesa do SUS
2011 foi marcado pela crise na saúde. As críticas da população à precariedade do atendimento prestado nos postos de saúde e no Hospital São Lucas se agravaram quando veio à tona a perda do Hospital Regional para Quixeramobim, obra avaliada em R$ 67,6 milhões. Na tentativa de melhorar a gestão do hospital, a Prefeitura transferiu a administração da instituição à Sociedade Beneficente São Camilo. Para estancar a sangria das contas da saúde, a gestão municipal ainda reduziu o salário dos profissionais de nível superior, cortando gratificações e modificando a base de cálculo do adicional de insalubridade (do salário-base passou a ser calculado com base no salário mínimo). 

Os profissionais reagiram. Com o apoio do Sindicato dos Servidores, dezenas de profissionais paralisaram suas atividades por 28 dias e expuseram a toda a sociedade crateuense a precariedade das suas condições de trabalho e as fragilidades do sistema público municipal de saúde.  Através do Sindicato dos Servidores, os profissionais também entraram com ação na Justiça do Trabalho requerendo que o adicional de insalubridade voltasse a ser calculado sobre o salário-base. Os servidores já venceram em primeira e segunda instâncias. O passivo trabalhista já superaria os R$ 500 mil. O processo agora aguarda julgamento pelo Tribunal Superior do Trabalho (última instância) e deve ser concluído até o fim do mandato de Mauro Soares. 

Guardas civis municipais também foram à luta pelos seus direitos. Também com o apoio do Sindicato dos Servidores, a categoria enfrentou a administração municipal e, pela primeira vez na história, paralisou suas atividades. Conseguiram reajuste salarial de 15% para os agentes classe II e 10% para os demais, além do compromisso da administração de modificar o plano de ascensão da categoria, o que nunca foi cumprido. 

2012: Sindicato dos Professores derrota Carlos Felipe no Tribunal de Justiça. A resposta das urnas

2012 também foi ano de grandes greves. Em resposta ao movimento deflagrado pelos agentes de endemias, o prefeito, mais uma vez, demonstrou o seu desprezo pela classe trabalhadora. A categoria requeria apenas o acréscimo de R$ 2,00 em suas diárias. Carlos Felipe determinou o corte de salário dos grevistas, que resistiram por 30 dias. Muitos só não passaram fome graças à intervenção do Sindicato dos Servidores, que arrecadou cestas básicas e emprestou dinheiro aos grevistas. Os servidores só voltaram a receber seus salários após determinação do Tribunal de Justiça, em ação de dissídio coletivo de greve ajuizada pelo Sindicato dos Servidores. A sentença ainda não foi proferida.


2012. Greve dos professores de Crateús.
FOTO: Sindicato dos Professores
Mas foi durante a greve dos professores que a truculência da gestão municipal atingiu seu ápice. O prefeito se recusou a negociar com a categoria, que reivindicava novamente o cumprimento de seu Plano de Cargos, Carreiras e Salários. Os professores ocuparam a Secretaria de Educação para forçar a negociação. A gestão ajuizou ação no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), com pedido liminar, requerendo a suspensão do movimento. 

A desembargadora relatora do processo, Vera Lúcia Correia Lima, determinou a realização de audiência de conciliação, a ser realizada pelo Juízo da Comarca de Crateús, tendo em vista a dificuldade de deslocamento das partes até o TJCE, em Fortaleza. A audiência, presidida pelo juiz Adriano Pontes Aragão com a presença das partes e do representante do Ministério Público do Ceará (MP/CE), promotor José Arteiro Soares Goiano, resultou em acordo entre professores e município. Os grevistas desocuparam as salas da Secretaria Municipal de Educação e voltaram às atividades. E o prefeito teve de assumir o compromisso de enviar à Câmara projeto de lei reajustando os salários dos professores. Mas Carlos Felipe não aceitou a derrota e, mesmo após o término da greve, resistiu em assinar o acordo. Além disso, protocolou no TJCE novo pedido de ilegalidade da greve, que já havia terminado, bem como a desocupação da Secretaria, o que também já havia ocorrido. Não satisfeito, o gestor, logo em seguida, ainda entrou com agravo regimental na Corte, com os mesmos pedidos. O prefeito só assinou o acordo depois de ser intimado pelo juiz. O MP enviou relatório ao TJCE, restabelecendo a verdade dos fatos e citando o acordo firmado. O processo foi arquivado. Esta foi a maior derrota de Carlos Felipe na Justiça. 

2012 também foi ano de eleições municipais e da derrota de Carlos Felipe para a oposição. O governante esperava uma vitória tranquila, mas o povo crateuense respondeu nas urnas aos desmandos do prefeito, que perdeu quase cinco mil votos em relação ao pleito anterior. Somados, os votos dos candidatos oposicionistas superaram os do gestor. Sem os votos dos funcionários contratados e seus familiares, Felipe teria sido derrotado. O empreguismo político, aliás, é outra característica marcante da era Felipe, com  a contratação de centenas de pessoas sem concurso público, fato que foi destacado no relatório enviado pelo MP ao TJCE.

2012. Ocupação da Secretaria de Educação de Crateús:

2013: a perda da maioria na Câmara Municipal. A maior derrota política de Carlos Felipe

10/01/2013. Bancada de oposição se retira do Plenário da
Câmara Municipal de Crateús em sessão que
alterou o Estatuto do Magistério.
Em 2013, agora com maioria na Câmara (nove dos 15 vereadores), Carlos Felipe resolveu ir à desforra contra aqueles que ele considerava os seus principais opositores: os sindicatos. Ainda na primeira sessão deliberativa da Câmara, várias normas importantes para o funcionalismo público municipal foram revogadas, enquanto outras severamente danosas aos trabalhadores foram aprovadas. 

O alvo principal foram os professores, que assistiram estarrecidos à destruição da maior conquista da categoria: o Estatuto do Magistério. Lei que garantia o pagamento de gratificação aos enfermeiros, categoria que capitaneou a greve da saúde, foi revogada. A base do prefeito ainda conseguiu aprovar emenda que proibia a liberação de dirigentes sindicais. Além de punir os servidores oposicionistas, Carlos Felipe pretendia fechar os sindicatos. Em protesto, a bancada de oposição se retirou do plenário, naquele que foi um dos episódios mais vergonhosos da história da Câmara de Vereadores de Crateús. 

Tudo indicava que a Câmara se comportaria como um reles anexo da Prefeitura, mas a maioria governista começou a ruir com a saída do vereador Zé Humberto da base aliada. Mesmo assim, o prefeito ainda detinha a maioria na Casa e decidiu desferir o golpe mais duro contra os servidores: a mudança de regime trabalhista, de celetista para estatutário, mesmo contra a vontade da grande maioria dos servidores. Com a mudança de regime, os servidores perderiam o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que hoje pode ser sacado para financiar a compra da casa própria, em situação de calamidade pública ou no caso de doença grave. O saldo ainda pode ser integralmente sacado por ocasião da aposentadoria.


03/10/2013. Servidores protestam na Câmara de vereadores
contra a mudança de regime trabalhista. Projeto do prefeito
foi derrotado por 9 a 5. FOTO: Sindicato dos Professores
Com o mesmo projeto, Carlos Felipe também pretendia implantar no município regime próprio de previdência social. Com isso, as contribuições previdenciárias dos servidores deixariam de ser geridas pelo INSS e passariam a ser administradas por um fundo municipal, cujo presidente seria indicado pelo prefeito. 

O objetivo do prefeito era reforçar o caixa da Prefeitura às custas do dinheiro dos servidores, que se mobilizaram contra a medida. Os sindicatos se uniram contra a aprovação do projeto e empreenderam ampla campanha nos meios de comunicação para sensibilizar a opinião pública crateuense e a Câmara Municipal. A base aliada ao prefeito rachou e dois vereadores da situação, Toré e Eva, votaram contra a proposta de Carlos Felipe. A derrota do prefeito foi fragorosa: 9 votos a 5 contra a aprovação do projeto. 

Apesar dos esforços da administração Carlos Felipe em reprimir a luta do povo e minar os movimentos sociais através da cooptação de suas lideranças, a sociedade crateuense demonstrou, mais uma vez, sua capacidade de resiliência e resistência contra a opressão. Inúmeras manifestações, organizadas principalmente pelos sindicatos, expressaram o descontentamento popular com os desmandos administrativos da gestão municipal, alvo constante de denúncias junto ao Tribunal de Contas dos Municípios (TCM), Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal, Controladoria Geral da União (CGU) e Procuradoria dos Crimes contra a Administração Pública (Procap), órgãos dos quais agora se espera a devida apuração dos fatos. Que a Justiça faça o seu papel!
Momento da votação do projeto da mudança de regime: 


Comentários
0 Comentários

Nenhum comentário :

Postar um comentário